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Ao mesmo tempo em que tomamos consciência da magnitude e profundidade da influência humana sobre os sistemas terrestres nós tentamos gerenciar os problemas decorrentes da instabilidade climática que, por sua vez, e de forma circular, é fruto do impacto antropogênico sobre o planeta.
A crise ambiental se impõe de maneira incontornável e, hoje, enforma variadas esferas de nossas vidas; do modo como separamos o lixo em casa à formação de grupos transnacionais de pesquisa e a implementação de incentivos fiscais “verdes”. Esta influência direta e decisiva dos elementos materiais no nosso dia a dia também torna visível a maneira como o que chamamos ‘civilização’ não consiste em algo exclusivamente humano.
A História, ou melhor, nossa história, é a narração das inúmeras relações estabelecidas entre diferentes povos, diferentes culturas, mas é também o conjunto de associações cruciais e profundas entre o humano e certos minerais, entre pessoas e barro, entre nós e ferro, o homem e o cavalo, o petróleo, o bicho-da-seda, sistemas de governo, ou seja, entre o ser humano e um grande leque de entes não-humanos dos quais o conceito de civilização incontestavelmente depende.
E aqui vale fazer a observação de que a História como é tradicionalmente contada, salientando a perspectiva do opressor e apagando a do oprimido, acaba por considerar ‘humano’ apenas uma parcela da nossa própria espécie. A narrativa branca/ocidental/do norte global transforma grande parte da população em simples reserva de recursos – a ser explorada quando convir. Esta é exatamente a mesma lógica que nos trouxe ao ponto em que estamos em termos de crise ambiental. Racismo e especismo são, simplesmente, graus do mesmo tipo de preconceito.
Se já passou da hora de pararmos de tratar pessoas como animais, já passou também da hora de tratarmos animais como animais – no sentido de que nem um nem outro são simplesmente recursos naturais a serem minados. A crise climática que enfrentamos está intimamente ligada à longa crise nas relações raciais que veio à tona tão intensamente nos últimos dias, assim como a fricção na relação entre os sexos. Não é possível tratar de uma sem abordar a outra.
Como consequência desta descoberta a posição privilegiada que nós -humanos/brancos/ocidentais/do norte global – tradicionalmente ocupamos na hierarquia das coisas é posta em questão. Descobrimo-nos mais um ente em meio a uma enorme variedade de Outros.
O exemplo talvez mais próximo e íntimo de como o ser humano se apoia sobre uma infinidade de seres não-humanos é o nosso microbioma – as comunidades de bactérias e outros microorganismos que habitam nossos corpos e dos quais o funcionamento do organismo depende. Esta relação simbiótica com determinados microrganismos é fundamental para manutenção da nossa saúde, assim como, numa escala maior, a relação equilibrada entre humano e não-humano é fundamental para a manutenção do bem-estar de todas as espécies.
Contudo, no decorrer dos últimos séculos, o humano tornou-se o principal agente geofísico moldando o planeta de maneira profunda e global. Enquanto colhemos os incontáveis benefícios dos avanços técnico-científicos feitos desde o início da Revolução Industrial não podemos deixar de reconhecer as consequências de nossos excessos e desatenção. O segundo plano estável e familiar de outrora está em rebelião – podemos detectar isso no aumento da frequência e escala dos chamados ‘desastres naturais’, na extinção em massa de espécies, na ubiquidade da poluição por plástico, e no plano social vemos isso refletido em movimentos recentes como “Me Too” e “Black Lives Matter” que pretendem a reestruturação da sociedade (humana) de maneira mais igualitária.
O composto de crises em que nos encontramos – ecológica, climática, social, econômica… – soa o alerta para o fato de que, afinal, não estamos sozinhos, no topo de uma hierarquia dos seres terrestres, mas fazemos parte de uma multidão de entes, todos com necessidades e papéis específicos a desempenhar dentro da Biosfera.
E o tempo não parece estar a nosso favor. Por um lado a contagem regressiva para um colapso ecológico vai acelerando, por outro já passou da hora de reavaliarmos as estruturas das relações entre humano e não-humano e traçarmos uma estratégia. O peso desta responsabilidade não pode ser maior que o estímulo à ação. O desmonte das estruturas que nos trouxeram aqui deve acontecer simultaneamente à pavimentação de caminhos mais amplos, inclusivos e igualitários.