Yuk Hui e a pergunta pela cosmotécnica

Yuk Hui é um jovem pesquisador que oferece uma visão renovada da relação entre tecnologia e cultura, uma relação que ele resume mediante a noção de “cosmotécnica”. O que significa “cosmotécnica”? Em geral pensamos a tecnologia como um fenômeno universal. Nesse sentido fala-se de civilizações ou povos “mais avançados tecnicamente” que outros. Assim se explicou, por exemplo, a “superioridade” dos europeus ao conquistar o território americano, porém também em suas incursões político-militares na Ásia durante o século XIX e XX.

O filósofo Hui põe em xeque, precisamente, essa premissa universalista. O que aconteceria se não existisse somente uma tecnologia, mas sim muitas cosmotécnicas? Como se veria afetada nossa percepção da história? Talvez o paradigma ocidental, que afirma que o desenvolvimento tecnológico apresenta-se como uma progressão unidirecional acumulativa, seja somente um dos modos de se pensar a tecnologia. O objetivo do seguinte texto é apresentar brevemente as ideias mais importantes que Hui apresenta em seu livro “The Question Concerning Technology in China: An Essay in Cosmotechnics” (‘A questão sobre a tecnologia na China: ensaio sobre a cosmotécnica’, em tradução livre, publicado por Urbanomic, 2016).

O artigo é de Fernando Wirtz, doutor em Filosofia pela Universidade de Tübingen (Alemanha) e membro do comitê diretor da Sociedade Internacional de Filosofia Intercultural, publicado por Código y Frontera, 16-07-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.

1. O marco teórico de Yuk Hui

Yuk Hui estudou engenharia informática e filosofia na Universidade de Hong Kong e no Goldsmiths College de Londres, especializando-se em filosofia da tecnologia. Foi pesquisador associado no Instituto de Pesquisa e Inovação do Centro Pompidou, em Paris, e pesquisador visitante nos Laboratórios de Telekom, em Berlim. Lecionou no Instituto de Cultura e Estética dos Meios Digitais, da Universidade Leuphana, de Lüneburg, onde também escreveu sua tese de habilitação em filosofia. Também tem uma relação próxima com o Instituto Strelka de Moscou, onde trabalhou junto a urbanistas críticos, como Benjamin Bratton, em um programa multidisciplinar que busca repensar a relação entre as cidades e a ciência. Atualmente vive e trabalha em Hong Kong.

Além de seus artigos, alguns dos quais se publicam regularmente em revistas como E-flux, Hui conta com três livros importantes (sem publicação no Brasil): “On the Existence of Digital Objects” (‘Sobre a existência de objetos digitais’, 2016), “The Question Concerning Technology in China: An Essay in Cosmotechnics” (‘A questão sobre a tecnologia na China: ensaio sobre a cosmotécnica’, 2016) e “Recursivity and Contingency” (‘Recursividade e Contingência’, 2019). Seus escritos foram traduzidos para uma dúzia de idiomas.

A formação internacional de Hui é visível também nos autores que o influenciaram: por um lado, o pós-estruturalismo francês e a filosofia técnica de Simondon e Stiegler; por outro lado, o idealismo alemão e Heidegger. A estes autores clássicos, que não deixam de reaparecer em seus escritos, é preciso somar correntes de pensamento mais recentes que tentam pensar problemáticas globais atuais. Aqui é preciso nomear, para os fins deste artigo, especialmente os autores do chamado “giro ontológico” no âmbito da antropologia, com autores como Descola, Latour e Viveiros de Castro.

As reflexões destes autores não são tanto uma ruptura total do paradigma investigativo, mas sim uma intensificação de uma atitude crítica já presente na antropologia, acostumada a ser enfrentada com hermenêuticas da realidade diferentes ou estranhas. Assim, pode se dizer que “dar o giro ontológico é fazer perguntas ontológicas sem tomar a ontologia como resposta” (Holbraad e Pedersen, 2017, 11). Se é possível definir ontologia esquematicamente como as reflexões sobre o ser e o que é, a ideia detrás deste giro epistemológico consiste não somente no fato evidente de que os valores variam de cultura a cultura, mas dão conta de que o repertório conceitual da antropologia se encontra atravessado pela pergunta pelo ser das coisas.

Dito de outro modo, interpretar o que pensa (neste caso) um povo sobre determinada “coisa” implica uma categoria prévia de “coisa” já dada. Assim, é preciso se mover um passo para trás para perguntar o que são as coisas. Viveiros de Castro, por exemplo, postula, em vez de um multiculturalismo, um multinaturalismo. O primeiro implica a ideia de que a natureza é uma e o que variam são as perspectivas culturais das pessoas. É possível, no entanto, inverter a pergunta: podem existir muitas naturezas?

Descola, outro dos autores relevantes desta corrente, fala de diversas ontologias (naturalismo, totemismo, animismo, analogismo), cada uma das quais aborda continuidades e descontinuidades diferentes entre o mundo físico e a interioridade. Deste modo, por exemplo, o naturalismo das sociedades europeias modernas marca desde o começo uma forte descontinuidade entre estes dois campos, um abismo que leva paralelamente a uma distinção hierárquica entre natureza e cultura.

Esta descontinuidade ontológica entre a natureza e a cultura implica mais que uma mera gradação, é uma divisão que promove uma determinada hierarquia. Assim, distingue-se entre sociedades “civilizadas” e sociedades “primitivas”, estando estas últimas, aos olhos da etnologia, ligadas intimamente com a natureza. São Naturvölker (povos naturais), com eram chamadas no século XIX. Para Hui, interessa superar esta crítica à relação com a tecnologia. Conforme se entenda o papel das coisas, dos objetos, obteremos um conceito distinto de tecnologia. Por este motivo, não é de surpreender que Hui se encontre próximo ao pensamento da chamada Object-Oriented-Ontology (termo alcunhado pelo filósofo Graham Harman), isso é, filosofia orientada a objetos que busca libertar os objetos de sua determinabilidade por meio da subjetividade.

Frente à primazia dos sujeitos, diferentes autores e autoras tentaram pensar um mundo mais além do antropocentrismo, onde a distinção hierárquica entre sujeitos e objetos se vê difusa. Assim, as fenomenologias alien (Bogost), os hiper-objetos (Morton) e flat ontologies (DeLanda) abundam por estas regiões filosóficas. Seguindo esta linha, Hui apresenta o seguinte raciocínio: se é possível pensar um pluralismo ontológico, e a tecnologia se define em parte em relação à natureza, então deve ser possível pensar igualmente um pluralismo tecnológico.

2. O conceito de “cosmotécnica” e a filosofia chinesa

Depois deste breve esboço que pretende ilustrar o interesse de Hui em uma mudança de perspectiva, o objetivo desta seção é apresentar sua obra “The Question Concerning Technology in China: An Essay in Cosmotechnics”. Como se desprende do seu título, o livro parece se posicionar como uma resposta ao texto de HeideggerA questão da técnica” (1949/1954) (em alemão, a palavra technik não tem as características de “técnica”, que remete mais a uma habilidade prática particular, mas sim se refere a um conceito geral mais abstrato que poderíamos chamar “tecnologia”.

Neste artigo usarei os conceitos de “técnica” e “tecnologia” como sinônimos. Nisso, o pensador alemão caracteriza a tecnologia moderna como aquela que transforma a natureza em uma reserva de matérias-primas, em um estoque disponível para ser explorado (HUI, 2016, p. 3). Pois então, o problema da tecnologia moderna não concerne à Europa ou ao Ocidente, mas Hui está interessado em perguntar em que medida é possível transplantar esta pergunta em solo oriental. Esta pergunta também implica o ponto de vista crítico segundo o qual se questiona o próprio conceito de tecnologia. Portanto, da mesma maneira que o giro ontológico em antropologia perguntava se eram possíveis múltiplas naturezas, Hui propõe pensar em uma multiplicidade de tecnologias.

Existe um equívoco geral de que todas as técnicas são iguais, de que todas as habilidades e produtos artificiais de todas as culturas podem ser reduzidos a uma coisa chamada “tecnologia”. E, de fato, é quase impossível negar que as técnicas podem ser entendidas como extensão do corpo ou externalização da memória. No entanto, eles podem não ser percebidos ou refletidos da mesma forma em diferentes culturas. (HUI, 2016, p. 9)

Hui encontra a possibilidade de romper com o conceito monolítico de tecnologia na relação das culturas com sua cosmogonia. Como diferentes pessoas pensam sobre tecnologia? O mito grego, segundo o qual Prometeu arranca o fogo (ou seja, a tecnologia) dos deuses, descreve a invenção da tecnologia como um conflito violento entre os seres humanos e os poderes da natureza governados por deuses e deusas imortais. A rebelião de Prometeu deu ao ser humano uma enorme vantagem sobre as demais espécies que habitavam a terra, a inteligência discursiva. No entanto, isso também implicava uma separação radical entre a humanidade e a ordem divino-natural. Em uma entrevista com Anders Dunker (disponível neste link), Hui explica:

Para os gregos, ‘cosmos’ significa um mundo organizado. Ao mesmo tempo, o conceito aponta para o que está além da terra. A moralidade é antes de tudo algo que diz respeito ao reino humano. Cosmotécnica, a meu ver, é a unificação da ordem moral e da ordem cósmica por meio de atividades técnicas. Se compararmos a Grécia e a China nos tempos antigos, descobriremos que elas têm uma compreensão muito diferente do cosmos e também concepções muito diferentes de moralidade“.

Fazer referência a este mito é importante porque o próprio Hui pensa a mitologia como uma manifestação do pensamento cosmogônico. Dentro da mitologia chinesa, o paradigma parece ser completamente outro. Lá, o deus relacionado com as invenções da agricultura e outras tecnologias é Shennong (神農). É interessante notar aqui, que, ainda que Hui não se refira aqui a este ponto, havia uma antiga escola filosófica chamada Nongjia 農家 (a escola de cultivadores ou agricultores) para a qual Shennong deu um papel central. Como seu nome indica, Shennong era o “agricultor divino”, o inventor do arado, da cerâmica, da metalurgia e do tecido. A diferença do relato prometeico, aqui é o próprio Shennong, quem ensina sua arte aos povos. Não parece haver, pois, um conflito entre o divino e o humano.

No taoísmo e no confucionismo, as duas principais correntes filosóficas chinesas da antiguidade, dao (道), a ordem cósmica, e ziran (自然, que costumeiramente é traduzida com natureza, mas que implica um sentido sutilmente diferente, parafraseado as vezes como “algo que flui por si mesmo” ou it-self-so-ing, em inglês), são duas noções conceitualmente muito próximas (HUI, 2016, p.64). A prerrogativa destes dois conceitos no pensamento chinês faz com que Hui argumente que, portanto, é provável que se encontre ali um conceito de utensílio ou ferramenta (器, qi) que complemente esta harmonia entre o dao e a natureza. De fato, esta será precisamente uma das principais teses de seu livro: “que podemos entender sistematicamente a filosofia chinesa por meio da análise das dinâmicas entre qi e dao” (HUI, 2016, p.129).

No pensamento grego, a tecnologia enquanto poiesis é algo que produz transformando a natureza. Enquanto que para Hui o conceito grego de natureza (physis) encontra-se ancorado em sua produtividade (pensada como crescimento e desenvolvimento), “esta ideia de que a tecnologia poderia complementar e aperfeiçoar a natureza não poderia ocorrer no pensamento chinês, já que para esta a tecnologia está sempre subordinada à ordem cosmológica” (HUI, 2016, p. 70). Hui busca um indício mais profundo desta intuição no conceito de 器, que geralmente se traduz como “ferramenta” ou “utensílio”, ainda que se refira originariamente aos recipientes rituais de bronze que se usavam durante a dinastia Shang (séculos XVII-XI a.C.).

Portanto, as ferramentas não são pensadas como algo desapegado, completamente autônomo, mas sim como recipientes, como containers. É assim que qi necessita do dao, e vice-versa. “Qi”, as vezes também se traduz como “coisas materiais”, “o que está debaixo da forma”. Os utensílios, entendidos como recipientes, requerem então, quase por definição, algo “mais além da forma” que funcione como seu conteúdo.

Uma melhor aproximação ao conceito de cosmotécnica de Hui é seu próprio exemplo favorito, o caso do açougueiro Pao Ding ou simplesmente o cozinheiro Ding, tal como sua história se conta no texto de Zhuangzi. Este açougueiro é famoso por sua habilidade excepcional para cortar e desmembrar o boi sem tocar seus ossos e tendões. Quando se pergunta a ele sobre a sua técnica, Ding diz: “O que amo é o dao, que é muito mais esplêndido que a técnica (臣 之 所好 者 道 也, 進 乎 技 矣, apud HUI, 2016, p. 102). A palavra para “técnica” ou “habilidade” está aqui dada por 技, que aparece também em chinês moderno em ambas palavras usadas para “técnica” como jishu (技 術) e keji (科 技). Em outras palavras, o segredo da habilidade de Ding não é precisamente sua relação mecânica com as ferramentas, mas sim que as ferramentas funcionam aqui de acordo com o dao, que flui intuitivamente através da mão do açougueiro. A razão instrumental, que poderia se entender casualmente como a lógica que unifica os movimentos individuais com resultados individuais, parece fora de jogo.

3. O sinofuturismo

A cosmotécnica não é um conceito a-histórico, mas se transforma de acordo com o contexto social e político. A exposição de cosmotécnica chinesa de Hui é, na verdade, organizada como uma reconstrução histórica. Após sua apresentação das primeiras ideias confucionistas e taoístas, Hui expõe outros autores do período Tang (618-709), Song (960-1270) e Ming (1368-1644). A transformação mais importante é sentida em toda a dinastia Qing (1644-1912), onde se prevê a ruptura entre qi e dao que ocorrerá após as Guerras do Ópio (1839-1842, 1856-1860), ou seja, depois que a superioridade tecnológica do Ocidente era um fato inevitável para a consciência chinesa. Para superar o atraso, os intelectuais reformistas chineses sentiram a necessidade de reverter a primazia do dao sobre o qi, colocando o primeiro a serviço do segundo. Esse investimento permitiu, por um lado, que a China chegasse ao Ocidente e se posicionasse como potência tecnológica. O preço que teve de pagar é, entretanto, o da aceleração autodestrutiva que a industrialização implica.

O conceito de “sinofuturismo” (também utilizado pelo artista audiovisual Lawrence Lek) implica uma visão do futuro e da tecnologia propriamente chinesa, pensada com ferramentas chinesas. Para Hui, o atual aceleracionismo tecnológico do gigante asiático apenas dá continuidade à lógica capitalista ocidental que coloca em risco a estabilidade climática do planeta. Por esta razão, torna-se mais do que nunca necessário tentar reincorporar a esfera da moralidade cósmica (o dao) no domínio da tecnologia. Não se trata, porém, de um “voltar ao passado” tecnofóbico, mas sim de “reapropriar” a tecnologia moderna de uma nova forma (Hui 2016,309).

Embora Hui não dê muitas dicas de como deveria ser esta nova cosmotécnica, sua proposta é sugestiva. Claro, não se trata apenas de substituir a “cosmotécnica capitalista” por uma “cosmotécnica chinesa”. Cada cultura, diz Hui, deve fazer um esforço para reconciliar a tecnologia com suas próprias práticas e culturas locais, de modo que a razão instrumental seja reorientada para as necessidades da comunidade. Assim, Hui dá um primeiro passo na direção de descentralizar o conceito ocidental e capitalista de tecnologia. Ao propor a possibilidade de múltiplas formas de conceber a tecnologia, múltiplas possibilidades também se abrem para repensar o papel da moralidade no desenvolvimento civilizacional.

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